Monday 26 September 2005

Ir à terra (citando o senador)




Ora o senador foi à terra e eu fiquei cheia de inveja e de ainda mais recordações.

Gosto muito de ir à terra. Durante anos fui de comboio com o meu pai, naquelas viagens na linha da Beira Alta que dura uma manhã inteira. Daquelas em que a gente acordava às cinco da manhã, muito tempo depois olhava para o relógio pensando que era tardíssimo e afinal ainda era onze da manhã. Chegando a Nelas, tínhamos de apanhar o autocarro da CP para Viseu, mas pedir para parar perto de Santar, uma vez que não tinha paragem.

Quando se vai a caminho e quase a chegar, um grande palacete que fica ao cimo de uma rampa parece estar no meio da estrada, mas está só à beira de uma curva. A igreja de Santa Luzia marca a entrada da aldeia de Casal Sancho, onde morava a minha avó. Era uma casa de granito, no meio de uma rua cujas traseiras davam para o pelourinho. Ao lado ficava uma casa abandonada, a que chamávamos a casa do homem mau. Hoje, depois de ter sido vendida pelo meu pai, é uma vivenda de três andares, branca. Enfim, só eu sei o choque que me provocou.

O dia mais emocionante - além de um mês inteirinho no verão que metia banhos no Dão, claro - para se passar lá era o domingo de Páscoa. Todos se levantavam bem cedo, vestiam as melhores roupas e esperavam pela passagem do padre, casa a casa, com a imagem do menino Jesus para beijar. Nunca fui religiosa, mas este era um momento de grande frissom. Isso e ter a mesa posta com muita comida.

Só lá podia fazer tudo diferente de Lisboa: passar o dia na rua ou no jardim ou no Outeiro ou a apanhar milho ou figos ou amêndoas na fazenda da minha avó, ou a tomar banhos no tanque, sempre tentanto manter o poço bem longe. Só ia a casa da minha avó para comer, levando os meus primos, ou para ir à fonte encher os cântaros.

Outro grande momento de frissom era quando telefonava a minha mãe ou ou meu pai, no caso de estar lá sozinha. Pouca gente tinha telefone e a minha avó nunca teve. Por isso, a senhora da venda - que era bar e mercearia ao mesmo tempo - vinha a correr chamar a minha avó: «Olhe que o seu filho vai ligaaaaaar!». Íamos as duas a correr. Aquilo ouvia-se mal, mas era uma maravilha, na pequena cabine telefónica que eles tinham improvisado dentro da venda.

Voltava para Lisboa a falar alto, muito alto, fruto de grandes corridas no Outeiro a chamar a malta ou do rés do chão a avisar a minha avó que já tinha chegado. Desde que se levantava, ela passava o dia no andar de cima, quase sempre na cozinha. A chave estava na porta, do lado de fora, podia entrar quem quisesse.

Só saíamos de Casal Sancho para ir ao café, sobretudo ao domingo. Era já num café à beira da estrada, onde me entretia a ver os três dukes. E raro era o dia em que não me cruzava com alguém e me diziam: «Tás a ver aquele? também é teu primo!»

Deixei de lá ir regularmente há uns quinze anos. Um dia, a meio de Dezembro, os meus pais foram buscar-me à escola e a minha mãe disse-me que afinal já não íamos lá passar o Natal. «Percebeste?», disse-me muito séria. Percebi. A minha avó, que um dia me levou à feira de Carvalhal Redondo para me comprar uma pulseira de prata e quase me obrigou a escolher uma - vim depois a descobrir que a minha outra avó já me tinha comprado um fio - faria anos sexta-feira. Beijo, vó.
(Foto: Igreja de S. Luzia, tirada de santarenses.no.sapo.pt)

9 comments:

Rita said...

Pois isso para mim era o pão nosso de cada dia, acho que ainda hoje falo alto à conta das raízes beirãs...

Ah, e era em casa dos meus avós que estava o telefone público, por isso era eu que ia a correr chamar a tia lucinda!!!!!!!! a sua filha vai telefonar de Lisboa!

Lisboa ficava a seis horas de autocarro, curvas do Luso incluídas....

Senador said...

É íncrivel o tempo que se demorava até lá chegar, hoje 2h30m chegam bem.
A descrição do domingo de Páscoa é comum a todas aquelas aldeias. A minha avó tinha uma sala de jantar que nunca usava a não ser para a visita do Padre na Páscoa! Era o tempo de fazer pão-de-ló e assar um cabrito.
Já agora algum de vocês se lembra da Maria-das-sete-mantas, a personagem imaginária que existia no poços?

El Gordo said...

Sem dúvida, gostei muito....

elisa said...

Tantas recordações das minhas férias beirãs que me trouxeste agora:)!!Obrigada. E obrigada pela visita

Alexandre Pereira said...

Redescobri há poucos meses a aldeia da minha bisavó, onde ia de vez em quando. Chama-se Ribeira, ali à beira de Campo de Besteiros, continua muito bonita mas nem a casa encontrei, apesar de sentir que está lá. Nunca passei lá um mês, nem perto disso, mas aprendi lá a nadar e a mergulhar no rio. Agora vou muito para a zona, mas já não há banhos de rio para ninguém.

Jo said...

é tão bom ter uma terra para visitar :) tb vou "à minha" muitas vezes :)

innocent bystander said...

A Maria das sete mantas não tou a ver... Mas é como disse, a gente nem se podia aproximar dos ditos poços. que não tinham protecção nenhuma, diga-se.

Raramente fiz a viagem de carro. E se fiz ia a dormir, que eu sou de enjoar logo à primeira danada de curva!

Personalidade Bloguinho Portuga said...

Eu nasci no estrangeiro, mas as raízes eram todas de Lisboa. Avós e pais, quero eu dizer. De maneira de nunca tive "terra". Era algo que me fazia sempre alguma inveja ouvir os colegas dizer que "iam à terra".

Bao said...

É bom saber que Casal Sancho deixa tão boas lembranças. Sem duvida que a casa que parece estar no meio da estrada é sensacional.
http://baoworld.blogspot.com
www.casalsancho.pt.to